Violência? Vou colocar meus óculos especiais e esquecer disso

Por Heron Moura.

Temos uma capacidade incrível de filtrar e anular a violência sofrida pelos outros. É uma cegueira seletiva: só vemos a dor que nos pertence.

Estou morando na Austrália, que é um país muito pacífico. Em 2020, houve apenas duzentos assassinatos, para uma população de mais de 25 milhões de pessoas. Para que tenhamos uma ideia do valor deste número, basta dizer que, em Florianópolis, com uma população de 500 mil habitantes, houve um número equivalente de assassinatos.

Porém, mesmo na Austrália, a violência pode ser filtrada e negada. No museu da cidade em que estou morando, a única menção ao massacre de aborígenes aqui na região de Queensland estava expressa da seguinte maneira: “As terras dos aborígenes foram tomadas com violência, com mortes dos dois lados (brancos e aborígenes).” Só que o número de aborígenes mortos foi incomparavelmente maior que o número de brancos mortos.

No Brasil, nos acostumamos com um índice de assassinatos estapafúrdio. Foram assassinadas, no Brasil, em 2021, 47.503 pessoas. Isto equivale a cerca de 20% do total de assassinatos no mundo, ao passo que a população brasileira corresponde a menos de 3 por cento da população mundial.

Na Guerra do Vietnã, cerca de 47 mil americanos morreram em combate. Por ano, matamos um número equivalente de brasileiros. E nem saem filmes de Hollywood sobre o assunto.

É muito difícil pensar em cada um destes brasileiros mortos. É o tráfico de drogas e a criminalidade descontrolada, dizem uns. E seguem adiante. É o sistema econômico, dizem outros. E seguem adiante.

No entanto, a coisa muda brutalmente de figura quando uma pessoa conhecida é assassinada. Imaginamos a cena inteira, a brutalidade, a dor. A violência é uma das piores experiências humanas, mas desde que esteja perto de nós.

Os moradores da periferia, no Brasil, sentem a violência de perto. Perderam para as balas os filhos, amores, vizinhos. Nós, de classe média, estamos distantes desta festa de sangue. Suspeito que este seja um dos motivos para a quase total falta de comunicação e de compreensão mútua entre os que vivem em bairros tranquilos e aqueles que vivem na periferia.

A violência exerce um fascínio sobre nossa sensibilidade. Na ficção, gostamos de ver sangue jorrando, desde que não seja o nosso. Na realidade, apreciamos dar uma espiada em corpos decompostos depois de um acidente de trânsito. O trânsito engarrafa, não por causa do acidente em si, mas porque todo mundo passa devagar para ver se há algum corpo na estrada.

Se fosse um parente nosso esmagado na ferragem retorcida, a reação seria bem diferente. Usamos óculos especiais para ver a violência, com o poder de apagar o que não queremos ver, iluminar as cenas curiosas e nos injetar ondas de dor quando a vítima é próxima de nós.

Está fazendo setenta anos da separação conflituosa do Paquistão do território da Índia. Em razão de um conflito religioso, pessoas que viviam juntas se separaram brutalmente na crise da Independência da Índia. Os hindus se deslocaram para o território atual da Índia e os mulçumanos migraram para o Paquistão. Custo total deste conflito: cerca de dois milhões de mortos.

É um número gigante de pessoas mortas com violência, mas isso nos diz pouco, muito pouco.

Como sabemos, a violência pode ser negada por nacionalismo. Os turcos juram que não massacraram os armênios. Os sérvios juram que não mataram os bósnios. E assim por diante, sempre.

Há outra curiosa negação da violência, por ideologia. Sociedades antigas, como as da Papua Nova Guiné, viviam em permanente conflito, com violência endêmica. No entanto, muitos antropólogos não querem ver a violência de sociedades primitivas, pois eles acreditam piamente que tais povos viviam em paz e que foi o estado moderno que implantou a violência. E os antropólogos enterram de novo os esqueletos com marcas evidentes de violência pré-estatal.

Alguma coisa dentro de nós bloqueia a percepção da violência, quando ela não nos diz diretamente respeito. Até que, como em um conto de Rubem Fonseca ou uma história de Dalton Trevisan, o crime atravessa a rua e nos encontra desamparados na calçada.

A luta contra a violência e os assassinatos no Brasil deveria ser a prioridade política número um de qualquer governo. Mas não é. Todos estão cegos à sua maneira. Ninguém vê um palmo de sangue à frente do nariz.

E esta cegueira seletiva para a violência não se refere apenas à violência física. A violência social e simbólica é também filtrada pelos óculos mágicos. As pessoas cometem violências sociais e simplesmente não percebem a dor infligida. Não estou falando apenas de pessoas da elite nacional, as quais miram com desprezo o pobre, o garoto preto, o crente da periferia. Muita gente de esquerda, aprumada e moralista, simplesmente não vê os subalternos, os faxineiros, o pessoal da segurança, os porteiros. Passam por eles sem olhar, cheios de orgulho de sua alta moral de socialistas.

Os aborígenes sofrem muito aqui na Austrália. São os infelizes em meio a um povo feliz. Sofrem violência simbólica todos os dias e têm que lutar todos os dias por um pequeno espaço na pujante sociedade australiana.

Às vezes eu acho que no Brasil quase todos são aborígenes, tal é o grau de violência incrustada em nossas relações sociais. Nem todos se matam, é verdade, mas muitos, muito se agridem.

Vou colocar meus óculos especiais e esquecer disso.


Heron Moura é escritor e professor da UFSC. Publicou O respirante (7Letras, 2006) e Uma Breve História da Linguística (Vozes, 2018), entre outros. E-mail: heronides@uol.com.br. Instagram: @heronidesmoura


Ilustração: Capa do álbum “Fake Peace”, de Abdulmohsen (2020).

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