O demônio da inocência

Por Fábio Lopes da Silva.

Houve um tempo em que a santidade era um país remoto – “um Oriente ao oriente do Oriente”, para repetir o célebre verso de Pessoa no Opiário. Chegar até lá custava rios de sangue, suor e lágrimas de quem se propunha a enfrentar semelhante travessia. Requerer a ajuda do Criador no cumprimento de tão árdua missão era indispensável. “Senhor, fazei-me puro”, clama aos Céus o jovem Agostinho de Hipona, que conhecia as suas fraquezas – humanas, demasiado humanas – a ponto de acrescentar este adendo sincericida à sua prece: “Mas não agora”.

E não é que a espécie evoluiu até poder dispensar-se de todos esses protocolos, burocracias e adiamentos? Atualmente, qualquer zé ruela serpenteia entre as coisas mundanas com a absoluta convicção de que, de nascença e para sempre, está marcado com o selo da inocência. Basta uma passada de olhos pelas redes sociais para que se constate que vivemos mesmo em meio a uma multidão de corações castos: nunca se viram tantas manifestações de empatia, tantas notas de repúdio, tantas moções de apoio, tantas boas intenções, tantos avatares em favor  de alguma causa tão urgente quanto distante. Reparem, de resto, na incontável quantidade de vezes em que as pessoas se declaram ultrajadas, indignadas ou chocadas em suas postagens, como se fossem Sidartas recém-saídos do palácio paterno a testemunhar a vilitas mundi pela primeira vez. A vida do Homo sapiens, que ao menos em parte era dedicada a coisas tão comezinhas quanto a construção do futuro e a tentativa de oferecer um mundo melhor para as crianças, transformou-se em algo bem mais relevante: o alardeamento contínuo da própria pureza – uma pureza que, repita-se, não precisa ser conquistada porque é inata; uma pureza que, a rigor, como a virgindade das mocinhas educadas no Sacré-Couer, tem que ser incessantemente defendida do ataque dos bad guys.

Isso é bem evidente entre os chamados progressistas: regra geral, eles não têm nenhuma dúvida de que foram tocados pela Graça e estão encharcados até os sapatos de Bondade, Justiça,  Verdade. Não precisam aprender nada com a experiência ou com as outras pessoas – quem dirá com seus adversários – porque tudo sabem, tudo veem, tudo pressentem. Eu poderia dar mil exemplos de que de fato é assim, mas, por conveniência e falta de espaço, vou-me ater a um caso bem emblemático: a campanha Lula Livre. O que estava em jogo não era a simples ideia – aliás, bastante defensável – de que o julgamento e a condenação do ex-presidente não atenderam ao devido processo legal. Tampouco estava-se apenas esgrimindo a tese – bem menos defensável – de que Lula não havia cometido os crimes de que o Ministério Público o acusara. O sentido último e maior da campanha era reivindicar a inocência de Lula não somente diante das acusações que lhe eram feitas naquele julgamento específico mas em face de toda e qualquer acusação que se pudesse fazer contra ele por seus atos pregressos e futuros. Em outras palavras, era de uma pureza mais do que moral – ontológica – que se estava falando. O próprio fato de Lula estar sendo objeto de uma ação judicial era usado como evidência de que o réu era essencial e irrevogavelmente santo, uma vez que o próprio da santidade, como bem sabemos, é ser perseguida pelos ímpios e infiéis. Mesmo os que admitiam que Lula pudesse ter autorizado a corrupção nas estatais brasileiras e na relação com o Congresso Nacional tomavam esse dado como sinal não de um crime mas da beatitude do líder petista: se ele consentiu com os ilícitos, foi para garantir a governabilidade e aprovar os projetos que beneficiavam o povo. Sujar as mãos com blood money não devia ser visto como violação da ordem legal mas como sacrifício de uma alma superior que, em nome dos pobres e desvalidos, aceita descer aos porões das negociatas políticas, respirar seu ar infecto. E é claro que, ao brandir a inocência inexpugnável de Lula, o que os seus seguidores e apoiadores faziam era, por tabela, brandir a própria inocência.

A campanha Lula Livre é parte de toda uma visão de mundo que, a acreditarmos no historiador Timothy Snyder, está muito longe de ser exclusiva do petismo e, na verdade, domina a quase totalidade da vida pública e política contemporânea na Rússia, na União Europeia, nos Estados Unidos e em muitas outras partes do planeta, inclusive nesta Pindorama. De acordo com essa visão, a história não progride em direção a nenhum ponto ótimo (o comunismo ou a universalização das democracias liberais, por exemplo) e nem mesmo pode ser pensada como uma sucessão de acontecimentos. Em lugar disso, deve ser vista como um ciclo que se repete indefinidamente e que, no limite, resume-se ao eterno retorno de um único e mesmo evento: o ataque de inimigos internos ou externos a “nós”, a comunidade dos inocentes. É isso o putinismo, com seu incessante apelo à ideia de que a Mãe Rússia está permanentemente sitiada pela concupiscência ocidental. É isso o trumpismo, que, sobretudo no Twitter e em outras redes sociais, bate incansavelmente seus tambores para anunciar a presença alarmante de estrangeiros – chineses, mexicanos, imigrantes em geral, negros, judeus – às portas da América branca e cristã. É isso o lulismo, com suas referências requentadas a todo um vocabulário herdado do século 20 – golpe, fascismo, etc. –, como se os desafios da política contemporânea ainda fossem os mesmos que acossaram nossos pais e avós. 

É isso também o bolsonarismo. Coloquem direitinho na cabeça o seguinte: embora os adversários do Capitão e dos seus seguidores tendamos a vê-los como selvagens e bárbaros, não é absolutamente assim que eles se enxergam a si mesmos. Aos próprios olhos, os bolsonaristas são uma Nação inocente, sempre assediada em seus valores e em seu modo de vida pela volúpia e a malevolência de falsos brasileiros e estupradores morais vindos de sabe-se lá de onde. Quem disso duvida que considere o famoso discurso de Bolsonaro a favor da abertura do processo de impeachment de Dilma Rousseff: todos conhecemos de cor o elogio que, nessa ocasião, ele fez ao Coronel Brilhante Ustra; o que  pouca gente percebe é que, na mesma frase, Bolsonaro faz uma enigmática e aparentemente disparatada menção à “inocência das crianças, que o PT nunca teve”. Ora, como tortura e pureza podem dividir o mesmo teto, como se um fio vermelho – perdão, verde-e-amarelo – as unisse em matrimônio? Eis a resposta: da perspectiva bolsonarista, o torturador é aquele que justamente exerce em nosso nome o sagrado dever dos castos de proteger a sua virgindade ameaçada. O que por terceiros é visto como agressão brutal e animalesca é compreendido pelo bolsonarismo como defesa, isto é, como um direito das vítimas, uma metamorfose de sua passividade fundamental, não o seu oposto. Para o Mytho e seus eleitores, Ustra é como aquele comandante da base militar de Guantánamo interpretado por Jack Nicholson em Questão de Honra, produção americana de 1992. A propósito de justificar o assassinato acidental de um fuzileiro inepto que ele mandara punir, o general replica ao advogado de acusação: “A morte de Santiago [o fuzileiro inepto], embora trágica, provavelmente salvou vidas. E a minha existência, embora grotesca e incompreensível para você, provavelmente salva vidas. Você me quer junto àquela cerca, na torre de vigilância [da fronteira americana com Cuba, na base de Guantánamo].”

Chamo essa santidade ontológica  – reivindicada tanto pelo bolsonarismo quanto pelos seus descontentes – de demônio da inocência. Nada é mais perigoso do que ela. Ela está sempre grávida das piores violências ou, no mínimo, da omissão diante das piores violências, pois o inocente  ontológico sente-se antecipadamente desculpado por tudo o que faz – e tudo o que faz, inclusive torturar ou aliar-se a corruptos, será antes prova de sua santidade.


Fábio Lopes da Silva é o atual diretor do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC, autor de “Sadopopulismo: De Putin a Bolsonaro” (Insular, 2020). E-mail: phabio.lopez6619@gmail.com


Ilustração: “Innocence n°1”, de Aim.A (2018).

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