Por Fábio Lopes da Silva e André Cechinel.[1]
Ao fim de uma de suas muitas palestras disponíveis no Youtube, o historiador americano Timothy Snyder se vê no púlpito diante de uma garrafa plástica de água, sem um copo em que pudesse despejar o precioso líquido. Um tanto desconcertado, ele hesita por um instante, até que toma o recipiente nas mãos, vira-se de costas para a plateia e mata a sede com dois ou três goles. Assim é o autor deste livro: um homem discreto, pudico e cerimonioso a ponto de não se sentir à vontade para fazer em público algo tão banal e universalmente aceito quanto beber água no bico.
Um personagem com essas características nasceu para o ofício que afinal abraçou: enfurnar-se em arquivos e bibliotecas a fim de examinar e confrontar fontes nas nove línguas em que é capaz de ler. Dessa reclusão voluntária e do estupendo esforço intelectual que lhe corresponde, surgiu até agora cerca de uma dezena de obras, a maioria das quais dirigidas a temas tão angustiantes quanto o Terror soviético, o Holocausto nazista e a repressão política que, em certos países do leste europeu, parece ser o esporte nacional.
Tratados como Terras de sangue, de 2010, e Terra negra, de 2015, já haviam se transformado em best-sellers. Mas nada disso se compara ao sucesso editorial que o autor conheceu nos anos seguintes. Deixando momentaneamente de lado suas pesquisas sobre a história dos autoritarismos na Europa moderna — ou melhor, recorrendo precisamente a essa longa experiência com relatos de violência política —, Snyder decidiu refletir sobre o contemporaníssimo recrudescimento dos ataques à democracia na Rússia, na União Europeia e em seu próprio país. Como resultado desse exercício, publicou em 2018 Sobre a tirania, um delgado volume com não muito mais do que cem páginas em que são apresentadas vinte lições práticas do século 20 a serem aplicadas pelos que hoje desejam preservar suas liberdades públicas e privadas. Para a surpresa de Snyder, o livro foi traduzido para mais de quarenta outras línguas — inclusive o português — e vendeu feito pão quente, permanecendo por cerca de um ano no topo da prestigiosa lista do jornal The New York Times.
Ato contínuo, o autor virou celebridade internacional, fazendo aparições nos mais concorridos talk shows e concedendo entrevistas para os maiores órgãos de imprensa do planeta. A fama, no entanto, não alterou a conduta de Snyder: ele continuou discreto, pudico e cerimonioso.
Surpreende que alguém com o seu perfil lance agora este Nossa moléstia, um livro em grande medida confessional, no qual ele se dispõe a compartilhar pensamentos, sentimentos, memórias e acontecimentos íntimos que lhe ocorreram, não em circunstâncias corriqueiras, mas em uma condição de extrema fragilidade e vulnerabilidade, quando permaneceu suspenso entre a vida e a morte por causa de uma sepse decorrente de uma apendicite mal diagnosticada. Ficamos a imaginar o tamanho do esforço de Snyder para abrir-se ao leitor da maneira como se vê no livro. Não é nada fácil morrer — ou quase isso — em público, tanto mais para uma pessoa tão reservada como ele.
Certamente, ao escrever sobre si mesmo e sobre seu tour pelos arrabaldes da morte, Snyder tinha em mente o modelo oferecido dez anos antes por seu amigo Tony Judt, historiador inglês que decidiu dividir com leitores e admiradores o doloroso agravamento de sua esclerose lateral amiotrófica, doença crônica e incurável que destrói os neurônios de controle dos músculos voluntários e leva o paciente a se incapacitar para a fala, a deglutição e, por fim, a respiração. A propósito, uma das heranças intelectuais legadas por Judt um pouco antes de sua morte, em 2010, foi o livro Pensando o século 20, que registra uma série de conversas que ele manteve com o próprio Snyder em seus dias derradeiros.
Outra força que provavelmente atuou na decisão de Snyder de abordar o próprio padecimento foi o seu compromisso profundo com as lições propostas em Sobre a tirania, que frequentemente valorizam a dimensão íntima e microfísica da vida como um espaço fundamental para o exercício da política e a articulação de redes de resistência ao autoritarismo. Estudando a maneira como populações oprimidas se defenderam de governos totalitários, Snyder descobre e tenta difundir a importância de coisas pequenas e aparentemente irrelevantes como a necessidade de cultivar amizades, de olhar as pessoas nos olhos ou mesmo de praticar aquilo que os americanos chamam de small talk, a boa e velha conversa fiada. Snyder reiteradamente reconhece a sua pouca desenvoltura em muitas dessas habilidades sociais, e Nossa moléstia parece ser parte de um esforço de tentar superar tais limitações, propondo uma relação mais próxima e pessoal com os leitores.
Contudo, o objetivo maior deste livro não é relatar uma experiência particular do autor — embora a dele seja impressionante e comovente — mas tomá-la como ponto de partida para uma reflexão muito mais ambiciosa e abrangente. O pronome possessivo nossa no título da obra refere-se, em primeiríssimo lugar, aos americanos e a seu singular sistema de saúde, cujo funcionamento é estranho e excludente a ponto de permitir que alguém como Snyder — dono de uma cátedra de altíssimo prestígio em Yale, com um bom salário e um plano de saúde muito melhor do que o da imensa maioria de seus compatriotas — passe dezessete horas sem atendimento na sala de emergência do hospital da universidade em que trabalha e quase perca a vida na esteira de uma comédia de erros médicos capazes de transformar um caso clínico ridiculamente simples em um episódio de infecção generalizada.
A par de descrever minuciosamente as falhas estruturais do sistema americano de saúde, Snyder procura explicá-las, relacionando-as a características gerais da sociedade de seu país, que, ao menos desde o final da década de 1970, assiste à diligente desmontagem do Estado de bem-estar social e aceita que seus direitos mais elementares sejam sacrificados em nome dos lucros pornográficos de um reduzido clube bilionários (cujos alicerces são a desregulamentação do capitalismo e o insidioso controle sobre a política via financiamento de campanhas, corrupção e lobbies).
A Snyder interessa explorar principalmente o vínculo do sistema americano de saúde com um dos mais acalentados valores da cultura dos Estados Unidos: a liberdade. Se os americanos reagem tão timidamente à maneira torpe como são tratados quando doentes, é em larga medida porque já admitiram viver em um ambiente em que suas liberdades vêm sendo crescentemente degradadas. Se, por outro lado, suas liberdades vêm sendo crescentemente degradadas, é muito por conta de que é cada vez mais difícil almejá-las e cultivá-las quando a existência se encontra sitiada pela ansiedade decorrente da certeza de que doenças, gestações, aposentadorias e outras circunstâncias normais na vida de qualquer pessoa ou bem terão custos exorbitantes, ou bem não merecerão a atenção médica devida, ou bem — como no caso de Snyder — resultarão em uma infernal combinação de gastos absurdos com serviços sofríveis.
Snyder, como não poderia deixar de ser, dedica várias páginas do livro ao assunto sanitário do momento: a pandemia do coronavírus. A desastrosa resposta que o governo Trump deu para a propagação da terrível doença é caracterizada pelo historiador americano como “o último sintoma de nossa moléstia”.
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Ao leitor brasileiro deste livro uma pergunta inevitavelmente surge: em que uma obra tão centrada na experiência americana pode interessá-lo?
Uma diferença evidente entre o sistema de saúde americano e o que vigora no Brasil é a presença entre nós do SUS, que, com todos os seus conhecidos e alardeados limites e defeitos, garante atendimento médico universal à nossa população. Nunca faltaram provas do quanto ele é crucial para que nossa sociedade não mergulhe definitivamente na barbárie. O fato, contudo, é que, desde sua criação, em 1988, a força do SUS como empreendimento civilizatório jamais se apresentou tão nitidamente quanto na pandemia do coronavírus. Não fosse a exuberante capilaridade do sistema e sua expertise, mundialmente celebrada, em campanhas de vacinação, o estrago causado pela covid-19 no Brasil teria sido ainda maior. Mesmo os que, a peso de ouro, puderam ser tratados em hospitais privados deveriam erguer as mãos para o céu — ou mais exatamente para a tantas vezes vilipendiada Constituição de 1988 — e agradecer o SUS por ter desafogado o sistema e lhes garantido uma vaga de UTI.
Sim, eles deveriam fazer isso, mas não vão. Na verdade, é muitíssimo provável que até os que, por causa da pandemia, hoje cantam loas ao SUS no Twitter e no Instagram se esqueçam rapidamente dos elogios feitos. Pandemias passam, e a memória delas é varrida ou distorcida quase na mesma velocidade com que a periculosidade dos vírus desaparece da cena. Quem disso duvida que consulte as páginas de O Grande Gatsby, clássico de 1924 da literatura americana: em tempo real, no calor dos acontecimentos, a aguda capacidade de observação do escritor F. Scott Fitzgerald registra com inclemente precisão a frivolidade e a indiferença das pessoas nos momentos imediatamente posteriores à pandemia de gripe espanhola (e, claro, à Primeira Guerra Mundial). Por que acreditaríamos que nos comportaremos melhor do que os personagens do romance quando tudo isso passar?
A rigor, nem é preciso aguardar o futuro para ter certeza de que o SUS — assim como quase todas as conquistas sociais consagradas na Constituição de 1988 — continuará a ser estiolado, e não só por conta da ganância dos que lucram com a medicina comercial ou da pregação ideológica incansável da variada, curiosa e crescente fauna de liberais brasileiros, sempre pronta a, com raras exceções, aliar-se a tiranos. Um sinal inequívoco de que também os atuais defensores do SUS nas redes sociais já estão fora de combate está em que, neste tempo todo, enquanto erguiam brindes aos serviços médico-hospitalares públicos, jamais deixaram de pagar regiamente seus planos de saúde privados.
Pagamos esses planos não apenas por não confiar no SUS e para ter cuidados em saúde um pouco melhores do que aqueles oferecidos pelo sistema público. Pagamos por esses e outros nanoprivilégios sobretudo porque no Brasil — onde a desigualdade social e as heranças da escravidão são ainda mais dramaticamente sentidas do que nos Estados Unidos — prevalece também o funcionamento social sádico que Snyder surpreende na sociedade americana e descreve tão brilhantemente em Nossa Moléstia: afora uma pequena parcela de superricos, todos sofrem em algum medida, e o consolo oferecido às classes médias para que a roda continue a girar é proporcionar-lhes o gozo triste de saber que há quem sofra mais do que elas.
Desnecessário dizer o quanto Jair Bolsonaro se beneficia desse jogo social baseado no sadismo (de um modo muito semelhante ao revelado por Snyder em sua análise do governo Trump). Mas não é possível fazer do Capitão — por mais asqueroso e desprezível que ele seja — o bode expiatório para todos os males que afligem o Brasil. A iniquidade em Pindorama vem de longe, e mesmo os que não se sentem responsáveis por ela e até julguem combatê-la talvez estejam mais envolvidos do que pensam na reprodução e no agravamento de nossos problemas e perversões sociais. A crítica sem autocrítica será sempre um equívoco lamentável.
Nesse sentido, vale concluir este texto com uma breve história e a moral que dela podem extrair os que, como os autores deste posfácio, se identificam com o progressismo, uma posição permanentemente (e, na verdade, cada vez mais) tentada pela ideia da própria inocência.
Durante a campanha de vacinação, circulou um vídeo feito por um comediante carioca que, ao receber o imunizante, finge se confundir e, em vez de gritar “Fora, Bolsonaro”, brada “Fora, SUS”, pedindo em seguida para a técnica em enfermagem que volte a aplicar a vacina a fim de que ele pudesse corrigir seu protesto. Talvez inadvertidamente, o esquete do humorista, como tantas vezes acontece com as piadas e chistes, toque em uma corda sensível de nossa sociedade: nesse caso, cremos, o fato de que a esquerda brasileira, ao mesmo tempo em que finca raízes no marxismo estatista, há algumas décadas têm abraçado — sobretudo via Foucault e outros iconoclastas franceses — um horror ao Estado e às instituições que, hoje mais do que nunca, revela seus limites e exige de todos nós, progressistas, um exame de consciência que quase ninguém parece disposto a fazer. Como o comediante do vídeo, ficamos a meio caminho entre a defesa do Estado de bem-estar social e a desconfiança adolescente de que ele nos roube a chance de fazermos o que nos der na telha. O preço dessa indecisão intelectual — que se desdobra como indecisão política — é pago por todo mundo, inclusive nós mesmos, mas principalmente, pelos mais pobres e menos livres entre os brasileiros e brasileiras.
[1] Este texto foi originalmente publicado como posfácio de Nossa Moléstia: lições sobre liberdade extraídas de um diário hospitalar, de Timothy Snyder (Editora da UFSC, 2022).
Fábio Lopes da Silva é o atual diretor do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC, autor de “Sadopopulismo: De Putin a Bolsonaro” (Insular, 2020). E-mail: phabio.lopez6619@gmail.com
André Cechinel é professor de Literatura na Universidade do Extremo Sul Catarinense (UNESC), autor de autor de “Tradição em T. S. Eliot: contornos do conceito” (EDUSP, 2022, no prelo) e “O referente errante” (Argos; Ediunesc, 2018). E-mail: andrecechinel@gmail.com
Ilustração: “The Hospital at 4 am”, de Douglas Manry (2009).
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