O vazio depois do gozo

Por Luiz Queriquelli.

Há quase três anos, dia após dia, num misto de raiva e prazer, a maior parte da imprensa brasileira e da elite intelectual progressista acorda e se contorce frente a cada novo despautério do atual governo. A raiva é compreensível: é difícil não se indignar com um governo que se elege sob promessas de combate à corrupção e, logo de início, modifica a lei da transparência para esconder fraudes e supersalários de cargos comissionados[1], que se apoia na imunidade parlamentar e outros contrapesos constitucionais para esconder esquemas de rachadinha[2], que monta uma comitiva onerosa e nada técnica para buscar um spray nos confins de Israel enquanto o mundo está numa corrida pela vacina[3], que surfa numa onda de reformas liberais e modifica a reforma da previdência para beneficiar militares e outros setores aliados[4], que coleciona acidentes diplomáticos e deteriora a imagem brasileira no exterior a ponto de a principal revista de centro-direita francesa afirmar que o Brasil está se tornando uma “Venezuela de direita”[5]? Os motivos são muitos e óbvios.

O prazer pelo eventual alívio da raiva também é natural. Jornalistas e opositores se exorcizam, vociferando contra cada despautério, num exercício para manter a lucidez e a racionalidade que esconde uma sensação de gozo infinito. O problema é que, à medida que o fim desses despautérios se faz cada vez mais possível nas próximas eleições presidenciais, a realidade vem à tona: esse gozo é finito e pode trazer um vazio consigo. Esse vazio, que deve vir à esquerda brasileira, decorre do fato de que seu antídoto não é o oposto do rival, mas uma versão supostamente mais digna e solidária da mesma lógica populista, que sobrevive à custa de performances e comoções públicas, à custa de atingir o sentimento do eleitorado e não atacar as necessidades reais com reformas políticas realistas e eventualmente controversas.

Como Vladimir Safatle comparou há pouco mais de um ano num artigo para o El País, intitulado “Como a esquerda brasileira morreu”[6], a inconsciência desse esvaziamento se assemelha a certo sonho descrito por Freud em que um pai morto continua a agir como se estivesse vivo. “A angústia do sonho vinha do fato do pai estar morto e nada querer saber disto. Se a esquerda brasileira não quiser ver sua morte definitiva como destino, seria importante se perguntar sobre qual é esse ciclo que termina, o que ele representou, quais seus limites.”

Safatle tem outros insights sagazes nesse mesmo artigo, como, por exemplo, expor semelhanças entre Lula e Bolsonaro ironicamente a partir da alegoria de um filósofo marxista: Theodor Adorno. Ao mostrar que o militar que nunca foi à guerra e o operário que só trabalhou no sindicato não são necessariamente opostos, mas duplos – versões de um mesmo arquétipo – ele lembra certa descrição do expoente da Escola de Frankfurt, que, inspirado no Chaplin de O Grande Ditador, define o líder populista como “uma mistura de King Kong e barbeiro de subúrbio”. Para Safatle, essa articulação entre contrários é fundamental. A pretensa onipotência deve andar juntamente com sua fragilidade: “ele deve ser ‘alguém como nós’, com a mesma falta de cerimônia, a mesma simplicidade e irritação que nós. A identificação é feita com as fraquezas, não com os ideais. Ele deve ser alguém que come miojo em banquetes presidenciais, que se veste de maneira desajeitada como alguém do povo. Ele deve a todo momento dizer que está a combater as elites que sempre governaram esse país (que agora serão os artistas, as universidades, os ‘cosmopolitas’ e ‘globalistas’). Ele deve mostrar que não é alguém da elite política, que na verdade tal elite o detesta. Pois se trata de criar um antídoto para toda forma de tentativa de recuperar a produção do povo como processo de emergência de dinâmicas de transformação social.”

A questão é que, ao assumir o poder, nem o populista de direita nem o de esquerda insurgem contra as elites, mas apenas rearranjam uma nova elite conveniente para a manutenção do governo. Se agora temos uma elite formada pelo “Véio da Havan” e o Clube Irmão Caminhoneiro, antes tínhamos a dobradinha JBS e MST. Na esteira de bandeiras anticolonialistas e minoritárias, que dão cor e aura de dignidade para o populismo de esquerda, surgem novos “campeões nacionais”, como apelidou o BNDES petista. Nos termos de Safatle, assim como atual populismo de direita, o anterior surge convergindo demandas sociais distintas e normalmente reprimidas: demandas contra a espoliação de setores sociais, contra a opressão racial, contra os legados do colonialismo, todas elas fiadoras dessa figura supostamente capaz de fazer emergir um novo sujeito político. “No entanto, o caráter nacionalista do populismo permite também a inclusão de setores descontentes da oligarquia, grupos da burguesia nacional dispostos a ter um papel ‘mais ativo’ […]. Assim, o ‘povo’, neste caso, nasce como uma monstruosa entidade meio burguesia, meio proletariado. Uma mistura de JBS Friboi com MST.”

Se a oposição brasileira seguir vivendo no sonho freudiano do pai morto ficaremos eternamente presos nessa trampa do falso oposto salvador que é na verdade um duplo replicante. Para não cairmos no vazio depressivo que vem depois do gozo em uma relação superficial, é preciso deixarmos a fantasia que sustenta nossas utopias políticas e nos ancorarmos na realidade: aquela dura, extenuante e aporrinhante construção de consensos democráticos. Como fizeram as esquerdas marxistas europeias no pós-guerra, a ala progressista brasileira precisa definitivamente abandonar a utopia em favor de uma socialdemocracia mais realista e pragmática. Para citar outra referência pós-guerra, “a democracia é a pior forma de governo, à exceção de todas as demais”. Somente uma agenda realista, afastada da fantasia, ciente de suas imperfeições e da inexistência de um pai salvador – ciente da mortalidade de qualquer pai –, poderá evitar o vazio depois gozo, se o melhor acontecer. Anseio pelos dias em que o Brasil voltará a usar a arena política para disputas legítimas e racionais – como a do estado de bem-estar social versus estado mínimo – e não estaremos mais à mercê de encantadores de serpentes.


Luiz Queriquelli é professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Já publicou livros nas áreas de linguística histórica e filologia, entre eles Fundamentos Latinos do Português Brasileiro (Appris, 2018), além de traduções de obras latinas clássicas, como o Livro V das Metamorfoses, de Ovídio (EdUfsc, 2017) e a Abobrificação do Divo Cláudio, de Sêneca (R. Copetti Editor, 2020). E-mail: luizqueriquelli@yahoo.com.br


[1] https://www.agazeta.com.br/brasil/bolsonaro-mudou-lei-de-acesso-a-informacao-apos-fraude-de-assessora-de-flavio-0620

[2] https://www.bbc.com/portuguese/brasil-57730263

[3] https://www.cnnbrasil.com.br/internacional/2021/03/08/comitiva-brasileira-visita-desenvolvedores-de-spray-nasal-anti-covid-em-israel

[4] https://economia.uol.com.br/noticias/redacao/2019/12/17/bolsonaro-sanciona-reforma-previdencia-militares.htm

[5] https://www.rfi.fr/br/podcasts/a-semana-na-imprensa/20210416-revista-le-point-mostra-como-bolsonaro-est%C3%A1-transformando-o-brasil-na-venezuela

[6] https://brasil.elpais.com/opiniao/2020-02-10/como-a-esquerda-brasileira-morreu.html


Ilustração: David Whittaker, I transition (® Graham Gaunt).

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