O futuro dura muito tempo

Por Fábio Lopes da Silva.

A disforia de gênero – ainda que com outros nomes menos empáticos ou simpáticos – vem sendo estudada e acompanhada por especialistas há cerca de um século. Os dados historicamente acumulados sobre o fenômeno indicam tendências muito nítidas: sua incidência gira em torno de apenas 0,01% da população e diz respeito basicamente a meninos que, na mais tenra idade, dão sinais claros de que não se sentem em paz com a sua anatomia e com a maneira como, por causa dela, se percebem e são classificados. É por isso completamente inesperado e anômalo o que atualmente se registra nos Estados Unidos e em outros países ocidentais, nos quais expressivas quantidades de meninas adolescentes sem experiência prévia de desconforto com sua identidade de gênero têm se lançado na arriscada aventura de se tornar meninos trans.

Esse é o ponto de partida da jornalista Abigail Shrier, colunista do  Wall Street Journal, em seu último livro, Irreversible Damage: The transgender craze seducing our daughters (Washington, DC: Regnery, 2020). A obra mexe em um número considerável de vespeiros – e não por acaso já havia começado a receber críticas e cancelamentos antes mesmo de vir a público e poder ser devidamente avaliada por leitores. Grandes empresas de comercialização de livros, como a Target e a Amazon, adotaram medidas que limitaram as possibilidades de venda e divulgação do título. Plataformas de crowdfunding impediram grupos de pais de organizar vaquinhas virtuais para impulsionar a circulação do volume.

É certo que a autora tem um viés abertamente conservador em suas posições políticas. Mas Irreversible Damage não é de modo algum um projeto transfóbico. Shrier reconhece explícita e respeitosamente a existência da disforia de gênero, assim como a pertinência, em muitos casos, de intervenções médicas e estéticas de redesignação sexual. Tudo o que ela pede é um pouco de contenção e zelo na hora de lidar com algo tão grave e dramático quanto a insatisfação – real ou reivindicada – de pessoas em face de traços arraigados e insistentes de sua biologia. Não há leveza possível quando se trata de autorizar mastectomias completas ou prescrever medicamentos como o Lupron, originalmente utilizado para a castração química de criminosos sexuais e hoje indicado para impedir – com consequências imprevisíveis – a puberdade de indivíduos alegadamente disfóricos. Provavelmente arqueólogos e historiadores do futuro terão dificuldade de compreender como sociedades desenvolvidas puderam julgar normal que crianças, adolescentes e jovens – cujas regiões cerebrais ligadas ao sentido de responsabilidade ainda nem se formaram completamente – fossem tão frequentemente submetidos a procedimentos tão agressivos, invasivos e definitivos, muitas vezes sem o consentimento dos pais.

Shrier não se intimida diante dos que defendem as intervenções precoces de redesignação invocando o número de suicídios entre meninos e meninas impedidos de interromper a puberdade ou fazer cirurgias necessárias às suas pretensões. Argumenta a autora que, para começar, sondagens demonstram que 70% dos casos de disforia se resolvem espontaneamente ao fim da adolescência, com a acomodação do indivíduo à identidade gay. Se é verdade que não se pode saber antecipadamente quem ficará do lado de cá ou do lado de lá dessa linha de corte estatística, é igualmente verdade que tampouco há números consolidados a respeito da quantidade de suicídios entre os já redesignados, isso sem falar na massa crescente de pessoas que se arrependem das intervenções que sofreram e se veem às voltas com danos irreparáveis às suas identidades de gênero originais, como infertilidade, abalos psíquicos ou mesmo atrasos cognitivos.

Shrier não se abstém de investigar o processo de transição da identidade masculina para a feminina. Mas seu interesse real é mesmo pelas pessoas nascidas meninas que têm se inclinado a adotar uma identidade masculina. À autora parece evidente que o que está em jogo nisso que ela chama de transgender craze  é uma epidemia em tudo semelhante à multiplicação de casos de anorexia ocorrida nos anos 1990. Especula Shrier que, então como agora, a questão fundamental são conflitos de autoimagem típicos da adolescência, que nada tem a ver com gênero. De acordo com ela, as redes sociais e a luta por prestígio e popularidade nas escolas e em outros ambientes seriam o meio de propagação desse impulso de buscar na mudança de gênero a solução para dramas existenciais que costumam afligir os seres humanos no curso inteiro de suas vidas mas ficam particularmente agudos na passagem para a idade adulta. 

Naturalmente, ela bem pode estar errada em suas suposições. Seja como for, é impressionante como todo um conjunto de instituições e corporações – médicos, psicólogos, professores, etc. – abonam tão imediatamente as autodeclarações de crianças e adolescentes sem verdadeiramente se dispor a escutá-los, quer dizer, sem se dispor a respeitar o que, desde o advento da psicanálise, há 120 anos, sabemos ser o caráter profundamente enigmático e obscuro do desejo humano. Em uma exuberante demonstração de irresponsabilidade e complacência, age-se como se as pessoas – mormente meninas e meninos mal saídos da casca do ovo – tivessem clareza acerca do que se passa no fundo de suas próprias almas, um lugar que, como o velho professor Alfredo Bosi gostava de repetir, a Deus pertence. O que parece aceitação e afirmação generosa do outro é muito mais provavelmente, contra todas as aparências, uma incapacidade e talvez um medo pânico de de fato abrir-se às singularidades que nos cercam.

Shrier arrisca uma explicação para o comportamento daqueles que deveriam realmente ouvir e educar os mais jovens e frágeis entre nós (em lugar de tentar empanturrá-los com aceitações prematuras cujo sentido é, no fim das contas, calá-los): o que se visaria, segundo ela, é criar confusão e desfazer os fundamentos do Ocidente, a fim de construir as condições para uma transvaloração dos valores nos moldes desejados pelos progressistas. Ora, esse é o ponto fraco de sua tese. Não há, creio, conspiração alguma em curso. Shrier negligencia o papel de alguns dos móbeis fundamentais da história humana: a ignorância, a estupidez, a irracionalidade e a covardia, que, aliás, não são de modo algum privilégio dos progressistas e esquerdistas. A tudo isso se soma a mais comezinha das causas: interesses muito concretos da medicina comercial em fomentar a venda de procedimentos e medicamentos. Não é preciso ser marxista para chegar a essa conclusão: basta não ser cego para o fato de que a maioria maciça das meninas norte-americanas dispostas a transicionar é branca e proveniente de famílias afluentes.

Louis Althusser, o filósofo que assassinou a própria esposa no auge sua carreira como principal intérprete francês da obra de Marx, colocou no título de suas confissões uma bela e pungente expressão: l’avenir dure longtemps – o futuro dura muito tempo. Atormentado pelas próprias memórias, ele sabia do que estava falando. Em tempos como os atuais – sacudidos pelo ritmo ansioso e angustiado do consumo e das redes sociais, para os quais é sempre véspera do fim do mundo –, a frase althusseriana é um advertência cada vez mais necessária, tanto mais quando se trata de lidar com crianças, adolescentes e jovens, que terão que conviver com seus corpos – biológicos ou recriados – pelo resto de suas vidas. Para onde vamos com tanta pressa?


Fábio Lopes da Silva é o atual diretor do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC, autor de “Sadopopulismo: De Putin a Bolsonaro” (Insular, 2020). E-mail: phabio.lopez6619@gmail.com


Ilustração: “Trans kids and cis kids are both sure of their gender?”, de Clappstar photography (2010).

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