Por Fábio Lopes da Silva.
A noção de diferença está hoje por toda parte: nos sonhos dos progressistas, nos pesadelos dos conservadores e reacionários. Os primeiros falam em tolerar as diferenças, em acolhê-las, incluí-las, aprender com elas, metabolizá-las. Os últimos desconfiam de sua presença, veem-na como ameaça, infecção, disrupção, corrupção. Há quem suponha que muros sejam necessários para preservar seus próprios ways of life, assim como há os que desejam afirmar o preceito do filósofo da ciência Paul Feyerabend: “a diversidade é benéfica”. Gays, negros, imigrantes e toda sorte de minorias e encarnações da alteridade são celebrados e bajulados por uns, enquanto outros os repelem, rejeitam, segregam, desprezam, excluem. Mas afinal o que é essa diferença que tanta paixão desperta? Do que estamos tratando quando dela tratamos? Seus poderes e sortilégios compensarão a energia despendida nos embates entre aqueles que dizem querer abraçá-la e os que, em contrapartida, pretendem dela se livrar? Terá a diferença esse peso que se lhe atribui e que a inscreve no centro do debate político contemporâneo? São essas as perguntas que me proponho a abordar neste breve ensaio.
Uma pista crucial para que compreendamos o que é a diferença e qual o valor desse conceito surge em um clássico da filosofia: as célebres Meditações Metafísicas, de René Descartes. Já há algum tempo – sobretudo depois que, em 1961, Michel Foucault colocou a obra de Descartesna origem do internamento dos loucos em manicômios –, chamar alguém de cartesiano virou xingamento em boa parte dos círculos acadêmicos ligados às Humanidades. Quisera eu, contudo, ter uma certa reserva do rigor intelectual, da coragem moral e da elegância estilística de Descartes para usá-la em meus próprios trabalhos e, de resto, distribuí-la a meus colegas de universidade.
Como é bem conhecido, o filósofo francês vivia em uma época de transição: o mundo medieval colapsara, sem que a modernidade já estivesse devidamente acomodada em seu lugar. Em um tal ambiente, as incertezas grassavam, e o ceticismo – quer dizer, a ideia de que é impossível distinguir o conhecimento seguro da simples opinião – projetava a sua sombra sobre a ciência, a filosofia e a religião.
Descartes era um adversário do ceticismo e estava disposto a derrotá-lo. Mas a sua forma de enfrentá-lo não recorreu a argumentos abstratos. O ceticismo, para ele, tinha que ser confrontado na prática: se o nome do jogo é duvidar, que se exerça a dúvida até o limite, a fim de verificar se ela é mesmo capaz de corroer tudo o que se apresenta como coisa certa e verdadeira.
Descartes se recusa a examinar caso a caso os juízos em que acredita e aqueles que parecem autoevidentes ou consensualmente aceitos: faltam-lhe tempo e paciência para tão longa e enfadonha tarefa. Em vez disso, sai à procura de um método capaz de escrutinar de um único golpe a totalidade das proposições supostamente verdadeiras. Esse caminho, no limite, leva-o a conceber a possibilidade de que haja um Deus mau que o engana em tudo que ele, Descartes, pensa. O simples fato de que esse Deus mau possa existir basta para que cada coisa que Descartes julga haver ao seu redor e cada pensamento que parece verdadeiro à sua consciência sejam postos em xeque. Ocorre que, como Descartes tão imediatamente percebe, o Deus mau só estaria pronto a enganá-lo se, ao mesmo tempo, a vítima do engano existisse. Assim é que, a cada vez que pensa, ele, Descartes, pode estar sendo enganado e, portanto, existe, nem que seja como caixa vazia em que o Deus mau deposita suas fake news. Mais importante ainda: quando pensa que existe, pensa algo necessariamente verdadeiro. Conclusão: mesmo que o Deus mau esteja à solta por aí, seu poder seria limitado: ele não poderia me enganar o tempo todo. O ceticismo é, pois, uma impossibilidade.
Seja como for, aqui importa para mim não essa referência ao Deus mau mas um momento anterior da argumentação de Descartes, quando este se dá conta de que, em todas as ocasiões em que julga estar acordado e consciente, ele pode estar sonhando. Ao contrário do que à primeira vista se possa imaginar, não é nada fácil discernir a vigília do sonho, já que todas as evidências normalmente invocadas para demonstrar que se está desperto podem ser reproduzidas no sonho. De nada adianta pedir a alguém que nos belisque, pois essa cena – sensação de dor aí incluída – é perfeitamente passível de ser simulada na mente de quem dorme. Do mesmo modo, acordar não muda nada: nos sonhos, pode-se ter a sensação de despertar – e Hollywood, a propósito, tem sido pródiga em ardilosamente explorar essa possibilidade em filmes como Matrix, O Show de Truman e Inception.
A certa altura de sua dissertação sobre o sonho e a vigília, Descartes menciona as figuras monstruosas que surgem em nossas fantasias noturnas. Em face do estranhamento que imediatamente produzem, somos tentados a tomá-las como uma negação radical da realidade. Contudo, é fácil mostrar que, à maneira das sereias, centauros e outras criaturas mitológicas, elas não passam de recombinações e distorções de seres ou partes de seres conhecidos, de modo que, antes de se opor à vigília, o sonho é a confirmação desta. Assim é que a diferença e a novidade que o sonho expressam são relativas, parciais e periféricas. O sonho, no fundo, é a realidade – ou, se quiserem, a banalidade – continuada por outros meios. O sujeito que sonha é um pouco como os personagens do romance Blecaute, de Marcelo Rubens Paiva: tendo sobrevivido ao Armagedon e diante da oportunidade de fazer o que bem entendem em meio aos escombros de uma civilização desaparecida, todas as estrepolias e transgressões a que se entregam soam decepcionantes, pouco ousadas, pueris.
Pensemos, por um instante, nos unicórnios. Se um dia subitamente nos avistássemos com um deles, a novidade certamente iria parar nas manchetes dos noticiários e nos trending topics do Twitter. Mas podem apostar que o estupor e o deslumbramento diante da descoberta não durariam muito tempo, e isso não apenas nem principalmente porque vivemos sob a égide da obsolescência programada, que transforma a vida em uma sucessão interminável de espetáculos que se substituem uns aos outros. O unicórnio logo passaria a ser tratado como uma coisa qualquer e sem importância sobretudo porque, ao fim e ao cabo, ele é apenas um cavalo com chifre, isto é, a soma – só um pouquinho esquisita – de dois elementos tão triviais quanto os postes de iluminação pública, as samambaias e os mictórios. Como bem escreveu Chesterton, um unicórnio é bem menos inusitado do que, por exemplo, um rinoceronte.
No mínimo, deveríamos admitir que, regra geral, não costumamos ir muito longe quando o assunto é conceber, perceber, compreender ou acolher a diferença. Ela é sempre alocada na periferia do sistema, jamais em seu centro. Que falem por nós os extraterrestres do cinema e aqueles visitantes de outros planetas que povoam a imaginação dos ufólogos: propostos como representação da alteridade irredutível – formas de existência que deveriam exceder os limites da própria animalidade tal como a conhecemos –, os ETs, na prática, nunca são muito mais do que seres humanos discretamente modificados. A diferença, que neles deveria ser central e acachapante, resume-se a uma cabeça maior do que as nossas, olhos mais perscrutadores e penetrantes, peles mais pegajosas e coisas afins. Quem espera ver o totalmente outro acaba tendo que se contentar com bem menos que isso: glosas das formas humanas. Os ETs somos nós no Photoshop.
As mais das vezes, aceitar a diferença é aceitar muito pouco – muito menos, em todo caso, do que a direita, em seus delírios paranoides sobre alteridade, faz supor. Mas é preciso imediatamente acrescentar que os limites da ideia de diferença com que operamos significam também que a generosidade de esquerdistas e progressistas – da qual estes parecem tão orgulhosos e que os faz se sentir tão moralmente superiores – cabe em uma casca de noz.
Fábio Lopes da Silva é o atual diretor do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC, autor de “Sadopopulismo: De Putin a Bolsonaro” (Insular, 2020). E-mail: phabio.lopez6619@gmail.com
Ilustração: “Fool Me Twice”, de Bri Wenke.
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