Carta a um jovem filósofo brasileiro

Por Wellington Lima Amorim.


Este artigo é uma resposta ao texto “Por uma filosofia da violência”, de Alexandre Meyer Luz, publicado na edição de setembro da Fora do Eixo.


O tempo passa e a cabeça gira quando somos provocados a pensar em uma filosofia da violência. Para desenvolvermos qualquer argumentação sobre o tema, precisamos obviamente realizar uma investigação a respeito das seguintes palavras-chaves: filosofia; violência.  A metodologia a ser empregada, mesmo que o “jovem filósofo” pratique lutas, deve ser a epoché, quer dizer, a suspensão de juízo, principalmente quando estamos diante de conceitos tão importantes para a História da Filosofia. Não é aconselhável contaminar os procedimentos com nossas preferências ou gostos. É importante avançar na análise com a  máxima isenção, mantendo a distância necessária para que se possa chegar a uma compreensão mais apurada dos conceitos que são apresentados. Cumprida essa exigência, é preciso saber perguntar pelo real significado dos conceitos abordados.

É importante lembrar que perdemos nas brumas da Historia da Civilização Ocidental o real significado do que é Filosofia, como afirmou certa vez o filósofo da Floresta Negra. Contudo, a forma de propor indagações filosóficas permanece a mesma, consistindo sempre em começar por perguntar o que é isto?. Se, por um lado, não é mais possível acessar o real significado do que é Filosofia, pode-se dizer, por outro lado, que ainda é possível tentar expressar por meio  do lógos – lógica ou linguagemo real significado dos conceitos que desejamos  elucidar.

Assim é que vale perguntar: o que é isto, a violência? A língua portuguesa, entre outras, tem origem no latim vulgar, última flor do Lácio. Quando falamos em violência, estamos nos remetendo à expressão violentia, ato de violar alguém ou se autoviolar. Para ser mais preciso, pergunto: o que isto, violar? Seu correspondente latino é violation, violatiōnis, do verbo violare, que significa maltratar, desonrar ou ultrajar com vigor, o que se marca na raiz vis, que indica odesejo de impor uma ação com vigor. Não existe, pois, uma ação não violenta. Toda ação é violenta quando agimos em legítima defesa ou contra nós mesmos. Segue que a estratégia usada pelo semita Jesus não é a prática da não-violência, como afirma o “jovem filósofo”:

“Dê a outra face”, já disse alguém, uma frase que é muitas vezes interpretada como um convite ao uso de uma estratégia de não-violência, uma estratégia usada com sucesso por líderes elevados à condição de estrelas por conta da recomendação explícita da estratégia. Martin Luther King, Jr. e Gandhi são as referências óbvias aqui; os dois líderes, devemos lembrar, usaram da não-violência como uma estratégia para seus fins”.

É um erro afirmar categoricamente que o pastor Martin Luther King, Gandhi ou Jesus Cristo  usaram uma estratégia não violenta em suas ações políticas. Muito pelo contrário, a estratégia sempre foi violentíssima, ainda que contra si mesmos. Nunca contra o próximo! Os três se autoviolaram e pediram aos seus discípulos que violassem a si mesmos, sem jamais violarem o Outro, mesmo em uma situação de autodefesa. Quando Gandhi pedia coragem ao povo indiano, mesmo depois do massacre de Jallianwala Bagh ou massacre de Amritsar, solicitava que a violência fosse dirigida contra eles mesmos, na forma da autoviolação, inclusive contra seu desejo natural de se autodefender. Na época muitos moradores tinham se reunido para comemorar um importante festival Hindu e protestar pacificamente. As tropas inglesas bloquearam as entradas e abriram fogo por dez minutos, até que o estoque da munição se esgotasse. Todas as pessoas atacadas estavam desarmadas. Foram mortos cerca de mil  manifestantes homens, sem contar com as mulheres e crianças. Existe violência maior do aquela escolhida e aplicada contra si mesmo? Existe exemplo maior de autoviolação do que se colocar diante de um pelotão inglês que dispara arbitrariamente? Repito: não existe não-violência. A violência é clara e atingiu com vigor o moral do império inglês.

Da mesma forma, quando Jesus Cristo, solicitou que dessem a outra face, esse exemplo ecoou nos futuros soldados romanos, que se converteram ao cristianismo, e atingiu o moral do exército de Roma. Um exército sem moral é uma força militar decadente e perdida. Logo, ao contrário do que pensa o “jovem filósofo” , a violência contra si mesmo, por não buscar agir com vigor contra o Outro, tem valor intrínseco e universal. O direito à autodefesa somente existe porque legitimamos o monopólio da força do Estado. Ou melhor, justificamos nossa violência contra o Outro, no caso da autodefesa, porque legitimamos o poder estatal.  Daí a conclusão do “jovem filósofo”:

“A lição geral aqui é a de que não deveríamos cair no canto da sereia: enquanto atores socialmente importantes (como o Estado, por exemplo) não abrem mão do uso da violência (física, inclusive), indivíduos e grupos sociais periféricos não deveriam simplesmente abrir mão da possibilidade de uso eventual do mesmo recurso como instrumento de autodefesa diante de violência injustamente aplicada.”

Portanto, não se trata de desenvolver uma filosofia da violência ou educar para a violência, o que não seria desejável. Pelo contrário, nossa tarefa está em educar para o diálogo não violento, promovendo a autoviolência e domesticando o  desejo de agir violentamente contra o Outro. Filosofia não pode ser concebida como luta ou batalhas verbais, mas como capacidade de abertura não violenta ao Outro. A única batalha ou violência possível é aquela empreendida contra si mesmo, que faz com que a carne confesse nossos excessos, convocando filósofos e filósofas a serem exemplos de domesticação da violência em sua potência de vida.  Quem determina o que é autodefesa? Você, “jovem filósofo”? O Estado? O Outro? O governo nazista considerava que estava se defendendo dos inimigos judeus que conspiravam contra o Estado Alemão e da humilhação perpetrada pelo Tratado de Versalhes. Já o Estado de Israel considera uma questão de autodefesa ter patrocinado o massacre de Sabra e Chatilla em 1982, ocupando parte do Líbano e as colinas de Golan e inaugurando uma limpeza étnica contra palestinos que dura até hoje. Cidadãos ruandeses em 1994 executaram seus vizinhos sob a alegação de que estavam se defendendo de uma peste de “baratas”. No curso de suas ações, usaram pernas de crianças decepadas a facão para sustentar mesas, o que motivou um importante filósofo francês a dizer que naquele momento o demoníaco encontrou a melhor forma de se expressar. Quem legitima a autodefesa? Para sair desse círculo vicioso, Martin Luther King, Gandhi e Jesus Cristo invocaram outro tipo de violência, جهاد  (Jihad), uma luta contra si mesmo, como ato moral universalíssimo que convoca ao constante reexame individual de nossos desejos e ações, sempre em tempo presente absoluto, buscando a pacificação social. Não realizaram tal projeto político para serem estrelas. Não obstante, conseguiram ser chamados de pacificadores ou filhos de Deus.


Wellington Lima Amorim é professor da Universidade Federal do Rio Grande do Sul. E-mail: wellington.amorim@gmail.com 


Ilustração: “The Violence We Embody”, de Brad Evans.

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