Por Luiz Henrique Queriquelli.
Nunca, especialmente nos meus tempos mais pueris, entendi bem por que os britânicos idolatravam tanto sua rainha. Até hoje ainda desdenho o lado fetichista dessa idolatria, mas sua recente morte e os últimos capítulos da história do Brasil me fizeram refletir sobre algo que ela representa para aquela perene nação insular e nos falta a nós, neste pandemônio continental que ainda chamamos de país. A primogênita do Duque de Iorque soube, como poucos nos tempos modernos, encontrar a justa medida para alimentar os sentimentos que dão coesão à instituição simbolizada por sua figura: o ideal de nação.
Antes de qualquer alegação, esclareço que não faço aqui apologia a nenhuma sorte de nacionalismo, mas chamo a atenção para a importância de existir algo acima de qualquer filão identitário, partidário ou ideológico, uma espécie de axioma político incontestável, que – todos concordam – merece ser perseguido. Como disse João Pereira Coutinho em um de seus últimos ensaios:[1]
Uma democracia só funciona quando existe um elemento pré-político que não oferece contestação. E esse elemento é o sentimento de pertencimento a algo que é anterior a nós e que irá sobreviver a nós. Podemos chamar-lhe “nação” – uma identificação territorial, linguística, cultural, até emocional, que não deve ser confundida com a palavra “nacionalismo”.
Elizabeth sabia perfeitamente que ocupava uma instituição muito maior e mais importante do que si mesma: a coroa, a nação, a unidade britânica. Por isso mesmo, talvez, o que ela fez de melhor durante toda a sua regência foi anular-se como pessoa, calar as idiossincrasias da mortal que era, e deixar a coroa falar – ainda assim, falando pouco e com sobriedade. Ninguém sabe muita coisa sobre sua intimidade e o que se sabe é desimportante: prova de que cumpriu bem sua tarefa.
Sua postura mostra que ela tinha clareza e distanciamento histórico para entender que o lugar que ela ocupou temporariamente existia muito antes dela e continuará existindo indefinidamente, com ou sem ela. Portanto, fez o necessário para preservar a crença de seu povo naquilo que ela representava: a unidade britânica, algo que atravessa os tempos e permanece, enquanto as tendências sociais de cada época passam, acrescentando uma cor ou outra à composição da paisagem.
Ora, esse ideal que Elizabeth soube representar e fomentar para os ingleses, esse “elemento pré-político que não oferece contestação”, “o sentimento de pertencimento a algo que é anterior a nós e que irá sobreviver a nós”, hoje parece muito vago para nós, brasileiros. Nosso país, como um espelho estilhaçado, está disperso entre muitas frações identitárias, e cada uma reflete o seu ideal de nação, a maioria deles nada convergentes e frequentemente conflitantes. Não existe um Brasil acima de todos, um Brasil compartilhado por todos apesar de visões e projetos. O Brasil do evangélico não tem nada a ver com o Brasil do ateu boêmio, e este sequer existe naquele. O inverso também é verdade. O Brasil da feminista passa longe do Brasil da patricinha ou da senhorinha católica. O Brasil do militante pela causa gay está tão distante do Brasil do tiozão da motociata quanto o Haiti está de Dubai. Mais do que distante, o Brasil do lulopetista e o Brasil do bolsonarista não podem coexistir – eles necessariamente implodem um ao outro.
No ensaio a que fiz menção, Coutinho afirma que a palavra “polarização” lhe parece um eufemismo bondoso. Para ele, o clima no Brasil é mesmo de pré-guerra civil, aludindo a um recente editorial da revista Economist, que expressa a mesma opinião. Nesse ponto, quero crer, como insider tupiniquim que sou, que tanto o português quanto o periódico inglês erram no palpite: somos preguiçosos demais e belicosos de menos para partir para um conflito. Nenhum dos possíveis candidatos que estão na iminência de assumir “a coroa brasileira” será capaz de fomentar um ideal de país supraidentitário e livre de contestação, e continuaremos batendo cabeça sem chegar a lugar algum por muito tempo ainda, mas sem guerra civil. Será como no purgatório de Bosch: uma balbúrdia surrealista e violenta que encontra beleza na sublimação, mas não tem a dignidade de uma guerra.
Luiz Queriquelli é professor da Universidade Federal de Santa Catarina. Já publicou livros nas áreas de linguística histórica e filologia, entre eles Fundamentos Latinos do Português Brasileiro (Appris, 2018), além de traduções de obras latinas clássicas, como o Livro V das Metamorfoses, de Ovídio (EdUfsc, 2017) e a Abobrificação do divo Cláudio, de Sêneca (Iluminuras, 2021). E-mail: luizqueriquelli@yahoo.com.br. Instagram: @luizqueriquelli
Ilustração: Mural da Rainha Elizabeth em Londres, de autoria desconhecida.
[1] https://www1.folha.uol.com.br/colunas/joaopereiracoutinho/2022/09/elizabeth-2a-tinha-virtudes-publicas-que-estao-ausentes-do-brasil-de-bolsonaro.shtml
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