As armadilhas da política identitária

Por Heron Moura.

Agora que teremos provavelmente um novo presidente no Brasil, mais voltado para as causas populares, é importante discutir os significados e limites de certos tipos de ação política. Refiro-me às políticas identitárias, baseadas em raça, gênero e outras categorias sociais.

Em livro publicado em 2018, Hasad Haider abordou os diferentes dilemas da política identitária. O livro tem o título de Mistaken identity, que poderia ser traduzido por Identidade Equivocada. A Editora Veneta publicou uma tradução brasileira em 2019, que recebeu o título de Armadilha da Identidade. Tanto o título original quanto a tradução são ilustrativos dos problemas colocados pelo autor. Uma identidade social pode ser um equívoco, pois não há nada de essencial e metafísico nela. E, por outro lado, a transformação da identidade em arma política pode se revelar uma armadilha.

Haider discute uma série de problemas da política baseada em identidades. Vou abordar aqui dois destes riscos e fazer algumas observações adicionais. Os problemas da política identitária são: i. fragmentação da ação política; ii. caráter liberal da noção de direito identitário.

Haider observa que a defesa intransigente de identidades sociais como raça e gênero termina por fragmentar a ação política, deixando em segundo plano a mobilização que visa a transformação social. A identidade é essencialmente um valor individual. Cada indivíduo se caracteriza por um conjunto de identidades sociais e este conjunto é único para cada pessoa. No entanto, todos os indivíduos, carregando em si este leque de identidades, inserem-se em um sistema econômico e social que supera e engloba estas identidades. As identidades não existem por si mesmas; elas ganham sentido e tornam-se concretas na medida em que servem ao modelo econômico que, em países como Estados Unidos e Brasil, é flagrantemente injusto com os mais pobres.

O objetivo maior da ação política deve ser a criação de uma sociedade mais justa. Com esta transformação, todas as identidades sociais seriam reconfiguradas. Mas a política identitária tende a fragmentar e isolar os atores políticos, e a mudança social como um todo fica travada.

Não foi assim, no entanto, que a política identitária nasceu. O termo política identitária surgiu em 1977, no grupo Combahee River Collective, formado, nos Estados Unidos, por mulheres negras e lésbicas. Recentemente, Barbara Smith, uma das fundadoras do grupo, ressaltou que a transformação social era a verdadeira meta do grupo e não a fragmentação do mundo social em diferentes identidades:

O que estávamos dizendo é que temos direito como pessoas que não são apenas mulheres, que não são unicamente negras, que não são apenas lésbicas, que não são apenas da classe trabalhadora, ou trabalhadoras – que somos pessoas que incorporam todas essas identidades e que temos direito de construir e definir a teoria e prática políticas baseadas nessa realidade… Isso é o que quisemos dizer com política identitária. Não estávamos dizendo que não ligávamos para ninguém que não fosse exatamente como nós.[1]

  O que é interessante nesta citação é que a autora deixa claro que a identidade é o ponto de partida da ação política. No entanto, infelizmente, a identidade muitas vezes tornou-se o ponto de chegada da militância. Com isso, o que era impulso para a transformação das bases econômicas e sociais da sociedade, tornou-se demanda individual, quando não se refugiou no campo do relato e dos fantasmas individuais. Como diz Sílvio Luiz de Almeida, no excelente prefácio à edição brasileira:

À sombra do identitarismo, o mundo é uma fantasmagoria em que ser negro, mulher, LGBT, trabalhador e todo sofrimento real projeta-se em narrativas fragmentadas, relatos de experiências pessoais (storytelling) e outros subjetivismos travestidos de método.

Não se trata de negar a identidade. Negá-la seria tirar de cada um de nós o substrato de nossa subjetividade. Mas é preciso articular identidades com um projeto político que vise não apenas a mitigação da dor dessas identidades, mas a transformação delas.

O segundo problema, ou armadilha, é o caráter liberal do identitarismo. Não por acaso, a política identitária tornou-se a política oficial da elite liberal dos Estados Unidos. A sociedade multicultural é o novo formato do capitalismo financeiro. A ideia por trás disso é muito simples: se você possui uma identidade que sofreu algum agravo, você merece uma compensação individual, sendo importante frisar que esta compensação não altera em nada a organização geral do sistema econômico.

Haider observa que este sistema de compensação de identidades agravadas ajudou a criar uma elite negra nos Estados Unidos, mas não beneficiou de forma alguma a maioria dos negros norte-americanos, que continuam a viver nos guetos dos bairros pobres. Ele constata que, no fundo, não é a raça que conta para o sistema, mas o papel que cada um desempenha nele. Se você é negro, mas está integrado no sistema, a cor da pele passa a importar pouco (pelo menos, para a elite liberal). Como disse Biden de Obama: ele é limpo e articulado.

Haider é paquistanês-americano. E isso explica por que o livro tem tanto valor: trata-se de um relato sincero de alguém que não pode negar a própria identidade, mas que não deseja, como limitante político, ficar preso a ela. A identidade o forçava e o constrangia constantemente, desde a infância. Quando adolescente, os atores parecidos com ele eram motoristas de táxi e terroristas.

Adulto, e já professor universitário, ele passou a perceber que a raça pode ser diluída, desde que você esteja no lugar certo e com as pessoas certas.

Ele conta que, em uma reunião com militantes brancos de esquerda, um deles disse o seguinte: é uma pena que não haja ninguém de cor entre nós! Só que ele, Haider, estava lá, com toda sua cara de indiano! A identidade social pode ser equivocada.

O atual ministro da economia do Reino Unido, Kwasi Kwarteng, é negro. O governo dele, conservador, acaba de lançar um pacote econômico com um enorme corte de impostos para os mais ricos, levando o país a um desequilíbrio fiscal e ao aumento da pobreza. Evidentemente, a maioria da população negra daquele país não tem nada a ver com a atitude do ministro, mas é interessante como, de fato, as identidades podem ser trocadas.

O caráter liberal do identitarismo implica que a questão política se converte na preservação dos direitos do indivíduo. E a preservação dos direitos individuais é a base do pensamento liberal, que ancora o sistema econômico contra o qual, em tese, o identitarismo deveria defrontar-se.

A identidade se transforma em direito e está na lei. Injúria racial é um crime previsto na constituição. Injúria vem do latim in+ius, iuris. In quer dizer não e ius, iuris quer dizer lei, direito. Ou seja, injúria é uma ação contra a lei.

Uma das armadilhas mais complexas do identitarismo é transformar a ação política em um libelo legal, ou seja, em acusação contra um caso de injúria. E os militantes se transformam em vítimas, no âmbito de um processo penal. E os culpados são todos os outros, que não compartilham a identidade injuriada.

Mas será que devemos reduzir toda a ação política transformadora a um caso legal? Como disse Judith Butler, o identitarismo funciona no quadro do liberalismo clássico.  As exigências de justiça são feitas com base em uma injured identity. Em tradução literal, injured identity é identidade injuriada, ou seja, identidade que sofreu injúria. Portanto, toda a política identitária se resume à aplicação da lei. Mas então para que tentar transformar a sociedade? Basta aplicar a lei e fazer a devida compensação no caso das identidades injuriadas. Todo o movimento de esquerda se dissolve, assim, no bom e velho liberalismo. Nas palavras de Sílvio Luiz de Almeida: “No fim das contas, a política identitária limita as organizações de esquerda ao figurino jurídico da luta por “mais direitos” e não há nada mais antirrevolucionário do que o “neoliberalismo de esquerda””. Para que mudar a sociedade, se o arcabouço legal já prevê a indenização das injúrias?

Uma última questão a ser colocada é que a política identitária não é prerrogativa da esquerda. Na verdade, movimentos conservadores contemporâneos são também identitários. Basta ver a enorme influência da identidade evangélica nas eleições presidenciais no Brasil, para entender que a política identitária é uma reivindicação de direitos, mesmo quando se trata do direito de não modificar nada.


Heron Moura é escritor e professor da UFSC. Publicou O respirante (7Letras, 2006) e Uma Breve História da Linguística (Vozes, 2018), entre outros. E-mail: heronides@uol.com.br. Instagram: @heronidesmoura


Ilustração: “American ghettos are are no accident”, de Genaro Molina.


[1] Cito o texto da versão brasileira, que foi traduzida por Leo Vinicius Liberato.

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