Por uma filosofia da violência

Por Alexandre Meyer Luz.

Meu hobby consiste em estrangular pessoas e em tentar romper as suas articulações. Não, eu não sou uma versão contemporânea de Jack, o Estripador. Eu sou um faixa-preta de jiu-jitsu brasileiro, aquela luta que se tornou famosamente associada, num certo imaginário popular, a indivíduos violentamente selvagens; e eu sou, também, um doutor em Filosofia e um professor estabelecido em um reconhecido Departamento de Filosofia.

Há alguma incongruência entre as duas atividades? Para muitas pessoas que ouvem sobre as minhas duas atividades, há. “Como pode um filósofo praticar um esporte tão violento?” é uma pergunta que ouvi dezenas de vezes, frequentemente feita em tom de reprovação. Bem, se há incongruência, ao menos não a encarno sozinho: dizem os registros que Arístocles (mais conhecido por seu apelido, “Platão”, o “de ombros largos”) competiu nas Olimpíadas disputando pelejas de pankration, a luta grega – que era bastante violenta, incluindo a vitória pela morte. Um dos pais da cultura “ocidental” e (mesmo que indiretamente) do cristianismo era um lutador. Claro, talvez Platão (e o resto da cultura grega) simplesmente não tenha se dado conta de uma incongruência óbvia; a pergunta, portanto, continua em aberto.

Eu vou sugerir ao leitor já convencido de que há uma incongruência entre a prática da Filosofia e a prática de lutas violentas que me acompanhe em um breve passeio (breve por conta da extensão deste ensaio) pelo território das suposições que o levam a assumir a incompatibilidade. Para organizar o percurso, vou sugerir que pensemos em algumas questões preliminares.

A primeira delas é uma pergunta sobre a natureza da violência. “Violento” é um adjetivo que se aplica a coisas muito diferentes: uma intenção pode ser violenta e uma ação pode ser violenta, por exemplo. Além disso, o uso do adjetivo flutua com uma ambiguidade que é relevante aqui: por vezes nós classificamos como “violento” aquilo que está associado ao “aplicar grande quantidade de energia” (uma explosão de uma bomba, por exemplo, é sempre “violenta”), por vezes nós usamos o adjetivo em um sentido que remete a um excesso (quando diferenciamos um soco “comum” de um soco “violento”).

Esta ambiguidade nos remete para um segundo tipo de questão, uma sobre o valor associado ao termo.Ter uma intenção “violenta” ou mesmo cometer uma ação “violenta” é sempre algo negativo? Note aqui que um certo olhar apressado (e comum) responderia rapidamente que sim! Porém, note também que arrombar uma porta com um chute é uma ação violenta, mas isto pode servir para salvar a vida de alguém. Estrangular alguém é uma

ação violenta mas pode ser uma ação louvável se estamos falando de alguém que ameaçava matar uma criança, por exemplo. Autodefesa muitas e muitas vezes exige ações (e intenções) violentas.

“Aplicar energia contra algo ou contra alguém” apenas descreve uma ação. Portanto, “ser violento” é moralmente neutro! De onde vem, então, a suposição de que a violência é algo negativo? Uma hipótese pode vir de algo que já foi indicado anteriormente: de que alguns dos usos do adjetivo carregam uma ideia de “excesso” de energia. Por exemplo, mesmo que qualquer chute numa bola durante um jogo de futebol seja uma aplicação de uma quantidade de energia que não é comum (não é comum para as nossas atividades “comuns”, como caminhar, subir escadas e etc), apenas alguns chutes são “violentos” (como as faltas cobradas por Roberto Carlos, Éder ou Nelinho).

Todavia, uma falta cobrada “violentamente” pelo batedor não é condenável em qualquer sentido. Se ela levar ao gol ela pode ser louvável, inclusive. Isto nos fornece uma pista para a questão que nos ocupa: o caráter negativo associado a “violência” não está diretamente associado aos usos mais primitivos do termo; ele deve vir de outro lugar, portanto.

Minha sugestão é a de que o caráter negativo associado à violência seja derivado de três fontes principais: primeiramente, a avaliação negativa da aplicação de ações violentas fora de contexto. Dar um soco em um desconhecido que caminha pela calçada é uma ação violenta fora de contexto (ou “não autorizadas em dado contexto”): não há motivação, autorização, atenuante ou etc a ser aplicado ao caso. Chutar a bola contra a barreira para machucar o adversário é também fora de contexto – ou parcialmente fora de contexto, já que alguém poderia tentar defender que intimidar o adversário é algo que está no contexto de uma partida de futebol profissional. De qualquer modo, temos um ponto: violência fora de contexto é sempre inaceitável, já que ela é intrinsecamente injusta (pense, por exemplo, no futebol e seu sistema de punição para violência fora de contexto).

Porém, casos de violência fora de contexto são a exceção, não a regra. Logo, como a sua existência poderia explicar uma aversão generalizada ao à violência? Eu vou acrescentar, para tal, uma segunda motivação, que eu vou chamar de estética: a aversão a um tipo de dano físico causado por ações violentas; o corte, o sangue, a fratura, todas são visões desagradáveis para a esmagadora maioria das pessoas (mesmo para muitas preparem churrascos malpassados), seja por conta de sua sensibilidade estética, seja por conta de uma suposição implícita de que uma pessoa devidamente civilizada mantém os devidos graus de separação de um evento trivialmente natural como o de provocar sangramento em outro ser – algo trivial numa caçada ou numa guerra, por exemplo. Seria a ânsia de tal tipo de experiência esteticamente desagradável a origem de uma aversão mais geral à ideia de violência?

Parece que as nossas duas hipóteses anteriores, mesmo que possam ajudar a entender parte da motivação, não deveriam obscurecer o impacto de discursos sobre a não-violência. Eu chamarei este ponto de pragmático: nós somos repetidamente expostos a dois tipos de discursos sobre o caráter inapropriado do uso de violência.

“Dê a outra face”, já disse alguém, uma frase que é muitas vezes interpretada como um convite ao uso de uma estratégia de não-violência, uma estratégia usada com sucesso por líderes elevados à condição de estrelas por conta da recomendação explícita da estratégia. Martin Luther King, Jr. e Gandhi são as referências óbvias aqui; os dois líderes, devemos lembrar, usaram da não-violência como uma estratégia para seus fins. Ser uma estratégia não é sinônimo de ser a melhor estratégia para todos os casos e não significa que estamos concedendo para a não-violência um valor intrínseco.

O problema de assumirmos estas duas últimas teses sem o devido cuidado é o de negarmos (ou o de diminuirmos) o direito à autodefesa. Se estrategicamente (diante de um adversário que pode nos eliminar por aplicação de violência, por exemplo) a não-violência pode ser a melhor estratégia para este ou aquele caso, não é óbvio que ela é a melhor estratégia para conter um ataque físico direto em todos os casos.

Conselhos como o de não reagir a uma tentativa de assalto são conselhos de natureza pragmática. Não reagir a um assalto é, na média, um bom conselho e vale considerar o porquê: é um conselho dado por gente que, direta ou indiretamente, lida com ações violentas e que entende bem certas características da reação a estas ações. Entende, por exemplo, os riscos de uma reação física a um ataque com uma arma de fogo ou com uma faca; está numa posição de distanciamento em que se pode fazer mais friamente o cálculo entre o risco de insucesso da reação e o ganho em caso de sucesso; entende que o corpo reage de modos inesperados durante a brutal descarga de adrenalina e etc. O mesmo vale para o conselho que leva em conta o risco da tréplica ainda amis violenta, como nos desenhos animados em que um tiro é respondido com um tiro de bazuca, que é respondido por uma bomba e, no fim, todos perdem.

“Não reaja” é, no geral, um bom conselho pragmático para a esmagadora maioria das pessoas, para a esmagadora maioria das situações. Porém, mais uma vez, não se deve confundir um bom conselho pragmático com uma regra geral. Há muitas nuances importantes que não podem ser discutidas aqui, mas a lição geral aqui é a de que não deveríamos cair no canto da sereia: enquanto atores socialmente importantes (como o Estado, por exemplo) não abrem mão do uso da violência (física, inclusive), indivíduos e grupos sociais periféricos não deveriam simplesmente abrir mão da possibilidade de uso eventual do mesmo recurso como instrumento de autodefesa diante de violência injustamente aplicada.

Podemos agora voltar para a pergunta da abertura deste ensaio. Afinal, há incongruência entre ser um filósofo e praticar uma arte marcial violenta? Primeiramente, deveríamos retirar o véu estético que muitas vezes turva a nossa visão sobre o uso da violência: um corte numa luta de boxe é um dano menor do que o rebaixamento de alguém por conta de vocabulário usado “violentamente”. Palavras podem ser usadas para causar dano e podem, claro, causar dano, intencional ou não. Quando retiramos o véu estético e passamos a olhar mais amplamente para o fenômeno da violência, nós nos deparamos com um fenômeno muito mais recorrente e cotidiano do que socos numa luta de boxe ou estrangulamentos em uma luta de jiu-jitsu.

Segundo, deveríamos lembrar que a violência não é intrinsecamente má: ela pode ser ferramenta de autodefesa, ela pode ser neutra se aplicada no devido contexto e etc. Artes marciais podem ser úteis em relação a isto: elas podem ser um meio para a preparação, para que os indivíduos estejam na melhor posição possível caso precisem exercer a autodefesa; além disso, elas podem potencialmente oferecer uma educação para a violência, lembrando que a tentativa de aplicar violência física tem seus riscos e custos, uma educação que não é feita verbalmente: aprende-se fisicamente a lidar com as consequências das tentativas de aplicação de ações fisicamente violentas, com as consequências de receber violência física e com os estados mentais em que situações violentas nos colocam e nos quais temos que decidir como agir em relação à ação violenta, nossa ou dos outros.

O discurso “macho man” que assola alguns dos ambientes das artes marciais é, vou sugerir, um discurso parasitário ao exercício das artes marciais. Lutadores não precisam fazer cara de malvado – e frequentemente não o fazem (mas precisam entender que o exercício de violência física entre humanos muitas vezes é precedido por exibição de potências físicas – porque intimidar é um jeito mais econômico de vencer um enfrentamento do que brigar). Este discurso parasitário, inclusive, felizmente vem sendo desafiado pelo crescente aumento do número de lutadoras em eventos com grande visibilidade, com lutadores LGBTQ+ e com outras ações explicitamente inclusivas – motivadas até pelo interesse mercadológico em ampliar a base de novos “clientes”.

Este tipo de discurso parasitário precisa ser desarmado, até pelos interessados em permitir que outros grupos sociais (como mulheres e crianças) frequentem tal ambiente. O como desarmar estes discursos parasitários poderia ser tratado, analogamente, como “discutir orientado pelo interesse pela verdade”, algo que engaja Filósofos e Filósofas muito facilmente, quando se trata de “lutas verbais”. Criar contraposições a discursos parasitários e nocivos poderia ser elevado a um esporte filosófico, eu sugiro.

Se a Filosofia for mais do que um lugar em que seres etéreos decifram questões abstratas, os filósofos e as filósofas deveriam pensar no evento trivial e cotidiano que é o

exercício da violência. Parece óbvio que as academias de Filósofos e Filósofas não são lugares de seres etéreos, mas lugares em que indivíduos se engajam em batalhas verbais – nem sempre conduzidas de acordo com as regras ou conforme a etiqueta. Filósofos e Filósofas talvez devessem, além de elevar a violência a uma questão filosófica, aprender a lidar com os seus próprios exercícios de violência (no contexto – como o ir contra uma tese, e fora de contexto, como exercer força argumentativa excessiva sobre os novatos). Como sugeri, as artes marciais são um lugar privilegiado para aprender sobre e com tais fenômenos. Por mais Filósofos e Filósofas estrangulando pessoas, sendo estrangulados – no devido contexto e pensando sobre isto!


PS1.: Agradeço aos inúmeros comentários de Bernardo Peressoni Luz, Jonathan Orozco, João Saraiva, Lucas Bispo, Matheus Oliva, Felipe Cougo, Wesley Sousa e Ângelo Martins sobre versões deste ensaio.

PS2.: Durante a redação deste, a comunidade das lutas foi estremecida pelo assassinato do multicampeão e um dos maiores nomes da história do jiu-jitsu brasileiro, Leandro Lo, durante uma intercorrência em um show. Pensar sobre a violência urge!


Alexandre Meyer Luz é escritor e professor do Depto de Filosofia da UFSC. Publicou “O que NÓS conhecemos?” (EdiPUCRS, 2015), “Conhecimento e justificação” (NEPFil, 2013), entre outros títulos. E-mail: meyerluz@terra.com.br


Ilustração: Choke (2019), de Gian Galang.

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