Por Fábio Lopes da Silva.
Bem sei que a adolescência é um período conturbado, no qual o ritmo bovino do rio da infância é subitamente sacudido por correntezas e cachoeiras que ora lançam o indivíduo em direção às exigências e possibilidades da vida adulta, ora o empurram de volta ao passado, quando não fazem as duas coisas ao mesmo tempo. Bem sei, além disso, que, sob tais condições de estresse e desorientação, a boa e velha capacidade humana de chutar baldes de todos os tipos e tamanhos é drasticamente amplificada, e o sexo – terror e epifania dos mais jovens e vulneráveis entre nós – se transforma em terreno fértil para experimentações que, com certa frequência, dão muito errado.
Bem sei também que, no Brasil, a educação sexual e o acesso a métodos contraceptivos abrem caminho com dificuldade em meio a moralismos tacanhos e desigualdades econômicas e sociais estupefacientes, que acabam por negar ou precarizar direitos legalmente reconhecidos e serviços públicos básicos a um número incontável de pessoas.
Bem sei que, em nosso país, a despeito do que reza a lei, os abortos continuarão a acontecer clandestinamente, colocando em risco a saúde e a própria vida de multidões de mulheres, sobretudo as mais pobres, que se veem impelidas a procurar atendimento desqualificado ou mesmo procedimentos caseiros completamente insalubres. Bem sei, de resto, que a desigualdade de gênero e o machismo ainda deixarão muitas dessas mulheres em condição de desamparo e solidão diante da escolha – quase sempre excruciante para elas – entre ser mãe de um filho indesejado ou interromper a gravidez.
Bem sei, por fim, que, em uma manifestação espetacular de hipocrisia, muitos dos que se apresentam como empedernidos adversários do aborto estão prontos a, alhures, tomar atitudes ou defender posições claramente contrárias à vida que dizem tão ardorosamente querer preservar.
Sim, todas essas coisas são dramática e comoventemente verdadeiras. Mas é igualmente verdadeiro que o feto não é tão-somente uma promessa de vida que pode se cumprir ou não. A linha que o liga ao bebê plenamente amadurecido é contínua e, portanto, impossível de ser quebrada a não ser por um ato de força, um gesto de inegável violência. O fato de o feto ainda não ser a criança não muda a verdade de que, como dois e dois são quatro, ele será a criança. Doi-me dizer isto, mas o aborto, sem chance de tergiversação possível, interrompe o desenvolvimento – de outro modo irresistível – de uma vida que não é a nossa e que, por isso, salvo casos excepcionais muito específicos, caberia proteger. Certo, o feto não tem sentimentos nem cérebro, assim como não tem uma série de outros traços humanos – mas os terá, de certeza. Mesmo o grito que ele não pode dar ao ser apagado do mundo para sempre é como “o canto obrigatório” do galo no poema de Gullar, que, muito antes de ecoar na manhã, já existe na escuridão do ventre da “pobre ave guerreira”. Quem quiser enganar-se a si mesmo e aos outros que o faça, mas o fato é que o silêncio do feto é humano. O silêncio do feto é o nome secreto do futuro.
A natureza impôs à mulher carregar o corpo em formação de seu filho. Isso implica restrições severas à sua existência. Ao contrário do homem, ela não pode se evadir da cena da gravidez senão se livrando da própria gravidez. Mas terá ela o direito de fazer com o feto o que bem entenda? Por óbvio, o seu corpo lhe pertence, mas não faz nenhum sentido a alegação de que o corpo do feto lhe pertença. Um feto não é um apêndice, um tumor ou uma vesícula. É uma vida que, em um sentido fundamental, já é, de vez que, pelas leis da biologia, necessariamente será.
Eu entendo que a adolescência é cheia de abismos e que as disparidades de renda e gênero são tão gigantescas que a simples proibição formal do aborto não resolve o drama real da vida. Mas, a meu juízo, é para a extinção efetiva do aborto (salvaguardados, claro, os casos de estupro, de anencefalia da criança e outras circunstâncias) que precisamos avançar por meio de políticas de transição e de justiça social. Em outras palavras, não deveríamos sonhar com a liberação do aborto – ou ao menos não só nem principalmente com isso – mas com o seu oposto: a criação de condições para que as pessoas possam se responsabilizar plenamente por seus atos sexuais e assumir suas consequências, o que naturalmente inclui preservar a vida do nascituro. Essa é a autêntica utopia. É assim que se fazem adultos, é assim que se afirmam o direito e os deveres de todas e todos – e é isso o que se chama de Estado de Direito.
Fábio Lopes da Silva é o atual diretor do Centro de Comunicação e Expressão da UFSC. Acaba de publicar Sadopopulismo: De Putin a Bolsonaro (Insular, 2020). E-mail: phabio.lopez6619@gmail.com
Ilustração: Obra sem título da série “Untitled: Abortion Pastels” (1998), da artista portuguesa Paula Rego.
Achei um artigo raso e fraco de argumentos.Primeiramente cabe salientar que nenhuma mulher, mesmo em países em que o aborto é legal, o faz de maneira descompromissada, como se fosse tomar uma dipirona para a dor de cabeça. É claro que educação sexual na escola, acesso a métodos contraceptivos variados é algo no mínimo fundamental que não ocorre no Brasil de forma abrangente a todas as classes sociais.
Para “seu juízo” deveria se avançar para “extinção efetiva do aborto”. Me desculpe, mas realmente não sei em que mundo vive ou não sabe que a grande maioria dos abortos voluntários é feito de forma caseira e muitos deles sem que ninguém, além da própria mulher fique sabendo. O aborto clandestino é a quarta causa de morte materna no Brasil.
Não, não é isso que se chama Estado de Direito. Mulheres de família rica vão à clínica de médicos renomados e fazem o procedimento de forma segura, sem os riscos dos remédios abortivos, instrumentos perfurantes. Mulheres que teriam total condição financeira de manter seus, filhos quando nascerem, bem alimentados, bem vestidos, estudando nos melhores colégios, com idas à Disney, etc. tem a opção de manter ou não uma gravidez indesejada. Agora, por outro lado, mulheres que não tem condições nem mesmo de se manter sozinhas são obrigadas a ter o filho, muitas vezes tendo que criá-lo com o pai ausente. E esta é outra questão muito grave. O abandono parental é uma triste realidade no Brasil. Homens querem obrigar mulheres a manter a gravidez com o argumento RASO de que ele será uma criança, mas, esses mesmos homens somem no momento em que sabem da gravidez ou logo após o nascimento. E não. Pagar pensão não reduz todo o problema em deixar todo o peso da criação de uma criança nas costas da mãe.
Apenas um dado para ser pensado. em Portugal homens e mulheres têm acesso à anticoncepcionais gratuitamente oferecido pelo serviço público de saúde e, ainda assim, por lá o aborto é permitido e nunca mais morreu mulheres em Portugal por causa de abortos clandestinos. Além disso, quando a mulher é atendida ela recebe apoio e aconselhamento e passa por um período de reflexão de alguns dias antes da realização do procedimento e, por esse tipo de acolhida e apoio muitas delas desistem o que é mais um ponto positivo.
Só pra terminar, pois está ficando muito extenso este comentário. É mentiroso o argumento de que o feto com certeza terá traços humanos. Uma em cada 10 mulheres gravida sofrerá aborto espontâneo até a 22ª semana de gestação. Aproximadamente 44 mulheres por minuto no mundo sofrem aborto espontâneo contrariando essa falácia de que “de certeza” o feto terá traços humanos.
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Caro Ricardo,
Naturalmente, você tem todo o direito de considerar meu ensaio “raso e fraco de argumentos”. Só tive dificuldade de identificar em que exatamente o seu juízo se baseia.
Para começar, você observa que “nenhuma mulher, mesmo em países em que o aborto é legal, o faz de maneira descompromissada, como se fosse tomar uma dipirona para a dor de cabeça.”. Ora, quem disse o contrário? Eu é que não fui, amigo. Em meu ensaio, destaco a “condição de solidão e desamparo” em que a mulher se vê diante do aborto e, de resto, chamo de “excruciante” a escolha “entre ser mãe de um filho indesejado ou interromper a gravidez”. Então, lamento decepcioná-lo, mas até aqui estamos juntos.
Um pouco adiante, você me acusa de desconhecer os métodos caseiros por meios dos quais os abortos costumam ser realizados, assim como o efeito das desigualdades sociais sobre o acesso a métodos mais seguros. De novo, acho que você não leu o meu texto, porque nele escrevo com todas as letras o seguinte: “Bem sei que, em nosso país, a despeito do que reza a lei, os abortos continuarão a acontecer clandestinamente, colocando em risco a saúde e a própria vida de multidões de mulheres, sobretudo as mais pobres, que se veem impelidas a procurar atendimento desqualificado ou mesmo procedimentos caseiros completamente insalubres.”
Na sua leitura apressada e enviesada de meu texto, você nem mesmo compreendeu a sutileza da tese que proponho: ao contrário do que aparentemente você imagina, eu não defendo a proibição pura e simples do aborto. Pelo contrário, afirmo que o aborto deva ser por ora liberado. Apenas acrescento que essa tem que ser uma “política de transição”, não a estação final do processo de fortalecimento do Estado de Direito
Até quando o aborto deve ser liberado? Penso ter sido claro quanto a esse ponto: até que a correção das desigualdades econômicas e de gênero permita às pessoas assumir plenamente as consequências de seus atos sexuais. E por que digo isso? Porque creio que o pleno Estado de Direito signifique garantir, sim, a correção das desigualdades sociais mas também a proteção do direito à vida do feto. O aborto é obviamente uma violência contra esse direito e, como tal, em algum momento futuro, tem que ser proibido.
Entenda-me: não estou afirmando que o aborto seja a única ou a principal violência do mundo, longe disso. A manutenção das desigualdades sociais é uma violência contra a mulher e contra o feto evidentemente maior do que a violência inerente ao exercício do aborto. Por isso a sua proibição pode esperar.
Aqui, claro, você pode discordar de mim e achar que, mesmo em uma sociedade muito mais justa do que a nossa, a mulher deveria continuar a poder escolher se interrompe a gravidez ou não. Mas aí seria o caso de você me convencer de que o aborto não é violência, e não acho que você seja capaz disso. O seu argumento de que muitos abortos espontâneos ocorrem não passa de um truque retórico. Crianças morrem “espontaneamente” por doenças, defeitos genéticos, desnutrição, acidentes, etc.? Sem dúvida. Não obstante, quem defenderia que o desenvolvimento da criança até a vida adulta não é uma linha contínua, que só pode ser voluntariamente rompida por um ato de violência? Ora, a natureza do processo biológico de desenvolvimento do feto em direção ao bebê plenamente formado é rigorosamente idêntica à do processo biológico que leva da criança ao adulto.
Cordialmente,
Fábio
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Continua fraquíssimo de argumentos. Deveria conversar com a colega que escreveu o outro artigo ou com mais mulheres para tentar sair da sua bolha do País das Maravilhas. Por hora então a “violência” deve ser liberada então. Para depois impor a condição para a mulher. Realmente isso daria super certo. Se ela não quiser ter não terá com apoio ou sem apoio. O fato não é defender o aborto ou o não-aborto e sim o aborto seguro ou inseguro. O aborto continuará existindo mesmo em um país que dá todas as condições à mulher.
Vai conversar com a colega do outro artigo “ficadica
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Totalmente de acordo. É por isso que em minha igreja condenamos a masturbação masculina, o que eu acho que tbm e uma questão bioetica. Quer dizer, tudo que pode ser vida, em determinadas condições, deve ser mantido e regulado e, como sabemos, o sêmen está cheio de possíveis futuras vidas, um líquido sagrado portanto que não deve ser derramado em vão.
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